2022

Resiliência (vocábulo muito na moda que substituiu resistência, perseverança, persistência ou mesmo teimosia) é a palavra que melhor definirá a insistência de Carlos Martins na continuidade da Festa do Jazz. Transferidos os concertos para o CCB, a Festa das Escolas não dispõe, no entanto, de um espaço no mesmo edifício, que passou para o Picadeiro do Antigo Museu dos Coches; e os quinhentos metros que distam os dois espaços obstam à circulação do público. Por esse motivo, também, fui forçado a optar pelo CCB, onde ocorreram os concertos principais. O Picadeiro foi também o local escolhido para os dois debates «Cultura e Cidadania: Improvisação é Inclusão» e «O Som de Lisboa: territórios acústicos e cidade», que se realizaram ao início das tardes de sábado e domingo, e ainda um terceiro espaço foi assegurado para a realização das jam sessions, na Livraria Ler Devagar (Lx Factory) nas noites de sábado e domingo.
A programação do festival foi da responsabilidade de Carlos Martins e Pedro Melo Alves. Diria, ao que me permito adivinhar, que os concertos programados por Carlos Martins foram consistentemente o melhor do festival, mas faltou muito nos restantes.

Trilok Gurtu Trio com Carlos Martins, João Frade, Mário Delgado
Trilok Gurtu é um percussionista que detém um enorme capital de popularidade entre o público português que remonta aos anos 80 (Festival de Jazz de Lisboa), e ele tocou por diversas vezes em Portugal. Mestre das percussões, indiano, essa popularidade funda-se muito na diferença e colorido da sua singularidade (a música indiana privilegia o ritmo e a melodia, em detrimento da harmonia), mas também na espectacularidade que advém outrossim da parafernália que transporta para o palco. Sem a novidade de outrora, esse colorido e singularidade não se perdeu mas, como noutros concertos que assisti recentemente (como o concerto com John McLaughlin e o mesmo Yuri Daniel – um admirador confesso de Jaco Pastorius - que o acompanhou no CCB), ele excede-se com frequência no virtuosismo e no espectáculo em prejuízo da música.
A associação com João Paulo Esteves da Silva e os convidados foi também algo forçada, o que se notou no desenrolar do concerto. As associações sucederam-se, percussão – acordeão – baixo, ou adicionado do piano, quarteto com saxofone, sexteto, percussão solo; com o foco esteve sempre direccionado para o exótico de Trilok Gurtu. Repertório focado no público, que incluiu um fado dedicado ao pai de Carlos Martins e dois originais do saxofonista, «Devagar» e «Sinos de Lisboa», um clássico do percussionista, «Folded Hands», uma raga em jeito de invocação de uma religiosidade universal (que concluiu benzendo-se), e evocações de África e do Oriente.
Espectáculo algo excessivo, ainda assim simpático e despretensioso, muito aplaudido.

Nazaré da Silva Quinteto
O concerto de Nazaré da Silva confirmou o que eu tinha ouvido no disco: muito caminho para percorrer - e não sei se este é o caminho. Uma voz bonita, mas a que a cantora não soube dar expressão, servida por poemas adolescentes que não colaboram com a música, e ela não tira verdadeiramente partido da voz.
A banda é competente, mas não lhe é oferecido grande espaço, e a centralidade no contrabaixo acaba por não cumprir.  Mas ela sobreviveria sozinha, como o demonstrou no último tema – o único não incluído no disco, e ela mereceu a minha classificação sobrevivente.

Hugo Carvalhais «Ascetica»
Música construída sobre uma diversidade de formas, entre o rock, a ambient, o Jazz e o free, dura ou contemplativa, ela foi capaz de se revelar estimulante, malgrado algumas debilidades (onde o concerto se afastava do disco). Diria que os teclados foram, com frequência, redundantes, e faltou aos saxofones o fulgor do disco – faltou a generosidade do saxofone de Emile Parisien; ao contrário de Liudas Mockunas que foi sempre excessivo e desajustado. E, pelo contrário, a bateria de Mário Costa revelou-se central, fulgurante e assertiva.
Mas Hugo Carvalhais revelou ideias e engenho na arquitectura das composições, na capacidade de articular  os elementos, e na construção do todo sonoro sustentado numa estrutura rítmica fecunda (confirmando o Ascetica como um dos grandes discos do ano passado).

DLW
O trio de vibrafone não é propriamente uma originalidade, e recordo os trios de Gary Burton no início dos anos 60. Mas a associação termina aqui e as referências musicais dos DLW serão muito mais os trios de piano de um Andrew Hill ou os mais contemporâneos de Vijay Iyer.
Música fria, mas de grande densidade rítmica, até pelo ascendente conceptual de Christian Lillinger, o baterista do trio e, naturalmente, as características dos instrumentos. O trio demonstrou uma enorme consistência e coesão, revelando comunhão de ideias musicais e experiência, embora sem novidade, e mesmo se essas ideias tendessem a esgotar-se ao fim de algum tempo.
Minúcia e rigor, numa música intensa e convicta, executada por um trio perfeitamente equilátero, entrosado e eficiente.

Salvador Sobral e Marco Mezquida
Salvador Sobral e Marco Mezquida conheceram-se em Barcelona há mais de dez anos, e firmaram uma amizade e respeito que se revelou em palco. E se necessário fosse ainda, Salvador Sobral foi capaz de se mostrar como um verdadeiro animal de palco, agarrando o público e emocionando. Ele canta em português, castelhano, catalão, francês ou inglês, com uma dicção e pronúncia perfeitas, com humor, à vontade numa diversidade de géneros e formas que surpreende e envolve. Ele já não será propriamente um cantor de Jazz, embora ele utilize o Jazz, como outras formas e referências, despudoradamente, improvisando, voz e corpo, imitando um trompete ou tocando uma tarola.
«In the wee small hours of the morning» (Sinatra), «Te ódio tanto», «You'd be so nice to come home», « I Wonder Who's Kissing Her Now?» (Dean Martin), «Canta coração» (Geraldo Azevedo), «As asas» (Chico César), «Bridge over troubled water» (Simon and Garfunkel), «You Never Give Me Your Money», «Carry that Weight» (Beatles), roubando dos cancioneiros populares americano ou britânico, espanhol, brasileiro ou português, apossando-se das melodias como se fossem suas. E excelente esteve o pianista, oferecendo ao cantor o espaço e a inspiração, nas múltiplas formas, entre a canção pop e a folk (os folclores), com incursões pelo blues ou o boogie woogie ou outras menos óbvias, como se sempre tivessem tocado juntos.

Lantana
Grupo constituído exclusivamente por mulheres, os Lantana pretendem afirmar-se não apenas como um grupo musical, mas um grupo composto exclusivamente por mulheres. A afirmação é política, feminista, e pretende contestar a ideia de que o Jazz (ou melhor, a música) apenas pode ser feita por homens.
Eu não encontro benefício neste tipo de grupos politizados e, se também nada tenho em desfavor, eu creio que a obra musical de Susana Santos Silva, ou Paula Sousa, ou Carla Bley, ou Allison Miller, ou ou, é bastante mais convincente, porque musicalmente mais sólida.
As Lantana não revelaram em palco consistência musical. Ancoradas num vanguardismo trânsfuga ao Jazz e prestações incipientes e dispersas demonstraram o pouco trabalho de casa de composição e ausência de ideias musicais.

 Jazzopa
Os Jazzopa é um grupo que pretende associar o Jazz ao rap, mas a experiência revelou-se incipiente. Confesso que não sou fã do rap, um movimento musical a que reconheço virtudes enquanto movimento social e político, mas do ponto de vista musical relativamente pobre. Os poemas caracterizam-se pelo repentismo e pela provocação. Diria que os quatro rappers marcaram pelo colorido e pela afirmação das preocupações sociais, mas foram musicalmente pouco ambiciosos. Uma estrutura rítmica repetitiva e pouco elaborada, uns sopros a sublinhar as frases, e pouco mais.

Joana Raquel e Miguel Meirinhos «Ninhos»
O concerto de Joana Raquel e Miguel Meirinhos confirmou o que tinha ouvido no disco e no concerto do festival Porta Jazz 2022: prematuro e incipiente nas composições, nas poesias e nas interpretações. Uma típica primeira obra.

Perselí
A música dos Perseli, um trio multinacional que se diria «de câmara», composto por contrabaixo e voz, trompete e saxofone abriu a noite do último dia da Festa do Jazz.  
Formação atípica para uma música muito bonita e bem executada, a denotar maturidade na concepção, denotou ainda assim, a meu ver, algum refreamento nos objectivos, e creio que ela poderia ir mais longe.
Mas ela foi capaz de comunicar emoção, mesmo na melancolia que por vezes lhe assistia, nos lamentos, e no minimalismo da execução. Refreamento notório no contrabaixo, e dolência, a servir a poesia, com momentos mais dramáticos cortados pelos sopros em movimentos circulares, uníssonos – desencontros com vocalizes como terceiro sopro, sem exibicionismos, apenas servindo o objectivo.  
Projecto interessante, com caminho para andar e savoir faire.

Trio HERSE
A procura de novos caminhos para o Jazz, e o eclectismo, são princípios saudáveis. Mas o concerto de Clara Lacerda não poderá, de facto, incluir-se nesta possibilidade. Não encontrei quaisquer laivos de Jazz no trio Herse, na linguagem assumidamente clássica, nas harmonias, na instrumentação; mas também nem sequer virtudes nas vocalizações atípicas de Clara Lacerda. Clássico nos fundamentos, ocasionalmente folk, um poema de Maria Teresa Horta, música sem emoção, melancólica, sem modulação.
Novos caminhos para a música clássica? - Duvido. (Para o Jazz também não.)

Marques/Cabaud Quarteto
O concerto de encerramento teve como protagonista um quarteto de notáveis: o português Gonçalo Marques, o argentino (há muito radicado em Portugal) Demian Cabaud, o belga Bram De Looze, e o veterano norte-americano Jeff Williams.
E se a diferente origem dos músicos pode suscitar interrogações, convém dizer que os quatro se conhecem bem e partilham de uma mesma concepção do Jazz que contempla a aventura (que só o Jazz autoriza). E mesmo se entre as idades do baterista e do pianista medeiam quarenta anos. 
Fugindo a uma possível revisitação dos standards, o repertório do concerto explorou temas do trompetista e do contrabaixista, que forneceu ao quarteto os motivos necessários para o momento mais alto do festival.
Se o acutilante trompete, de onde partiam quase sempre as composições, e o irrequieto e criativo contrabaixo, a nunca se remeter para o papel de mero sideman, são protagonistas assíduos nas minhas crónicas, a minha atenção esteve muito para o engenho e subtileza do baterista (menos opulento e vigoroso, talvez, que noutros concertos a que lhe assisti recentemente), e a argúcia harmónica de Bram De Looze, um pianista notável.
Quatro músicos de Jazz de corpo inteiro, capazes de swingar ou aventurar-se por inexplorados territórios, com uma dose generosa de imprevisibilidade (e apesar disso sólidos na execução), solos consistentes e imaginativos, empatia e generosidade; um prazer para estes ouvidos. 

Festa do Jazz:
Direcção de Carlos Martins
Organização: Sons da Lusofonia